Qual é o grande desafio do campo missionário?

Adaptação, língua, cultura, comunicar o evangelho? Nada disso!

Cácio Silva

Este artigo foi publicado inicialmente na revista Capacitando para missões transculturais (No 19, 2o Ed. Digital, 2019), produzida pelo Departamento de Educação Missiológica (Demi) da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). Trata-se de uma publicação anual com artigos missiológicos que pode ser adquirida pelo e-mail demi@amtb.org.br pelo valor de R$ 16,00 (edições disponíveis desde 2018).

Imaginava inicialmente que, para mim em particular, o grande desafio de viver em um contexto transcultural seria a adaptação, pensando especialmente na alimentação –

sou daqueles que “comem com os olhos”. Para minha surpresa, isso não foi um problema. Depois de pouco tempo, tomava xibé (farinha com água) na cuia compartilhada.

Pensei então que a língua seria o grande desafio, pois sou totalmente surdo de um ouvido. Língua isolante, com alta ocorrência de laringalização e contrastes nasais, ainda ágrafa e tonal, tendo quatro tons com incidência léxica e sintática. Mas com certo esforço e paciência, de repente a comunicação começou a fluir.

A essa altura, entretanto, a cultura se revela um quebra-cabeça sem sentido, peças soltas que não se encaixam, um mosaico que não ganha forma. Esse deve ser o grande desafio, pensei. Mas com a convivência, um bom método, boa consultoria e, sobretudo, graça de Deus, as peças começam a se encaixar, e os padrões de pensamento passam a fazer sentido.

Porém, muito mais complexo que aprender uma língua e compreender uma cultura é comunicar o evangelho. Afinal, nem sempre comunicamos bem em nossa própria língua e cultura, que dirá em outro contexto. Nesse ponto, concluí que comunicar o evangelho, esse sim seria o grande desafio transcultural. Mas novamente tive de reconhecer meu equívoco, pois depois de erros e acertos, pela graça de Deus, a comunicação flui, o Espírito Santo abre o entendimento e o povo começa a compreender o evangelho.

Finalmente, no décimo ano de campo, concluí que meu grande desafio não é encarar cardápios exóticos, viajar ao longo de dias em pequenas canoas por enormes rios, dormir em palhoças abertas em plena floresta, me aconchegar em rede ao invés de na cama, nem tolerar os diversos tipos de mosquitos que se revezam em seus turnos dia e noite. Não é aprender uma língua difícil, compreender uma cultura complexa, nem mesmo comunicar o evangelho para uma cosmovisão tão distante. Não é enfrentar restrições políticas, oposições ideológicas e muito menos lidar com as críticas dos críticos. Meu maior desafio, de fato, é amar. E não me refiro a amar um povo perdido, com as mais diversas mazelas socioculturais de uma sociedade sem Jesus. Nem a amar os colegas de equipe, cada um com seu perfil próprio e às vezes bem diferente do meu. Nem amar o local onde vivemos, com suas limitações de infraestrutura, alto custo de vida, calor característico da Amazônia e isolamento do mundo. Nem mesmo a amar o ministério, com seus peculiares desafios que nos tiram da zona de conforto. Me refiro, sim, a amar a Deus. Concluí que meu grande desafio é amar a Deus de tal forma que eu ame tudo aquilo que ele ama e deteste tudo aquilo que ele detesta.

Objetos do amor

Deus criou o homem com a capacidade inata de amar. Mesmo os grandes vilões da história, como Hitler, foram homens que amaram e amaram intensamente. Só que erraram seu objeto de amor ou foram excessivos.

  • Em 3 João 9, vemos que Diótrefes gostava de “exercer a primazia”. A palavra usada é philoproteuo, composta de phileo (amar) e protos (primeiro), trazendo assim o sentido de “amar a preeminência”. Ele tem amor, mas um amor voltado para uma necessidade pessoal de estar em evidência, chamar para si os holofotes.
  • Em 2 Timóteo 4.10, Paulo fala de Demas, que o abandonou por ter “amado o presente século”, na contramão da advertência de Tiago 4.4, de que a “amizade do mundo é inimiga de Deus”. Ele ama, mas seu amor está depositado nas efêmeras coisas desta vida.
  • Em 2 Timóteo 3.4, Paulo fala dos “mais amigos dos prazeres que amigos de Deus”, usando a palavra philedonos, composta de phileo (amar) e hedone (prazer), que dá origem a “hedonismo”, portanto, “amantes do prazer”. Eles amam, mas amam os diferentes tipos de prazeres em busca de autorrealização, a despeito do alerta de 1 João 2.16: “A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida não procedem do Pai, mas procedem do mundo”.
  • Um pouco antes, no verso 2, ele fala dos avarentos usando a palavra philarguros, composta de phileo (amar) e arguros (prata, moeda), portanto, “amantes do dinheiro”. Eles amam, mas seu objeto de amor é Mamom. Em sua primeira carta, o apóstolo já havia advertido que “o amor ao dinheiro é raiz de todos os males” (1Tm 6.10).
  • No texto de 2 Timóteo 3, Paulo disserta sobre os “últimos dias”, os “tempos difíceis” (v.1), e apresenta uma lista com dezenove nefastas qualidades. Encabeçando essa lista, ele diz que os homens serão egoístas usando a palavra philautos, composta de phileo (amar) e autos (prefixo que, como no Português, traz a ideia “próprio de si, si mesmo”), portanto, são mais que egoístas, são “amantes de si mesmos”.

Amor próprio

Não por acaso, esse adjetivo encabeça a lista dos horrores. Ele é o grande antimandamento, pois a tendência natural do ser humano é se colocar em primeiro lugar, inclusive na lista dos objetos do seu amor.

Por influência da teoria da autoestima, o senso comum colocou o amor próprio como uma das grandes prioridades da vida e solução das crises pessoais. “Você precisa se amar mais” é um conselho corriqueiro mesmo em nossas igrejas e gabinetes pastorais. Curiosamente, entretanto, não há um versículo sequer nas Escrituras que nos estimule ao amor próprio. Pelo contrário, o convite de Jesus é “negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (Lc 9.23), em outras palavras: “Quer vir após mim? Morra para você mesmo!”.

Tenho a impressão que muitas das nossas crises no campo missionário estão ligadas a um excessivo amor próprio. Por nos amarmos demais, diante das lutas e críticas facilmente nos sentimos vítimas da vida, desenvolvemos autocomiseração, coitadismo, descontentamento. Ou, por outro lado, diante das bênçãos e elogios facilmente nos envaidecemos, nos supervalorizamos, nos autoexaltamos e nos sentimos os tais.

Tim Keller, em seu livro Ego Transformado, diz que olhamos para o outro e pensamos: “Sou melhor que ele”. Isso é vaidade. Ou olhamos para o outro e pensamos: “Sou inferior a ele”. Isso é baixa autoestima. Mas os dois movimentos são resultado de uma comparação competitiva, são duas faces de uma mesma moeda, moeda essa cujo nome é orgulho. Para o senso comum, a solução para a baixa autoestima é se amar mais. Nessa ótica de Keller, é se arrepender. É preciso se amar menos, não o contrário.

Alguém pode pensar que no segundo grande mandamento está embutida uma sugestão de autoamor. Creio, porém, que o “amarás o teu próximo como a ti mesmo” traz em si o pressuposto de que eu já amo a mim mesmo e me amo em demasia. De qualquer forma, o que encontramos explicitamente nas Escrituras é o grande desafio de, em primeiro lugar, amar a Deus com todo o nosso ser e, em segundo lugar, ao próximo como a nós mesmos. É o amor a Deus que me leva a amar o próximo, não o contrário.

Relacionamentos cristocêntricos

Paulo propõe a aplicação desse princípio em Efésios 5 e 6, quando recomenda nos sujeitarmos uns aos outros “no temor do Senhor” (5.21); as mulheres a se submeterem aos maridos “como ao Senhor” (5.22); os maridos a amarem suas esposas “como também Cristo amou a igreja” (5.25); os filhos a obedecerem seus pais “no Senhor” (6.1); os pais a criarem seus filhos “na admoestação do Senhor” (6.4); os servos a servirem seus senhores “como ao Senhor” (6.7); e os senhores a não ameaçarem seus servos por pertencerem “ao Senhor” (6.9).

É uma proposta de relacionamentos cristocêntricos. Meu amor à minha esposa não deve ser em resposta ao amor dela por mim, como advoga o senso comum e até muita literatura cristã. Devo amá-la em resposta ao amor do Senhor por mim e como consequência do meu amor por ele. Assim como Cristo ama a igreja não em resposta ao amor dela por ele, mas em resposta ao amor do Pai por ele.

O mesmo princípio se aplica ao ministério. Devo estar no campo por amor ao Senhor; devo amar um povo perdido não pela boa resposta dele ao evangelho, não pelos frutos, nem mesmo pelas carências desse povo, mas sim por eles serem objeto do amor de Deus; devo amar meus colegas de equipe não por suas qualidades ou defeitos, mas pelo fato de eles serem alvo do amor de Deus. Aliás, devo me amar não pelo que sou, pelo que sei ou por minhas virtudes, mas, de igual forma, por eu ser objeto do amor de Deus.

Creio que não apenas no campo missionário, mas sim na vida, nosso grande desafio é amar a Deus. Aliás, já que esse é o grande mandamento, certamente é também o grande desafio. E como nossa autodeterminação é insuficiente para gerar o verdadeiro amor, oremos para que o Espírito Santo faça crescer nosso amor pelo Senhor, e para que esse amor transborde pelo próximo que está próximo e também pelo próximo que está distante.

Sobre o autor
Cácio Silva é pastor presbiteriano, missionário da APMT – Agência Presbiteriana de Missões Transculturais e da WEC Internacional, servindo entre indígenas da Amazônia desde 2006 com plantio de igrejas, educação intercultural bilingue e coordenação de equipe missionária. É professor de fenomenologia da religião e diretor da WEC Amazônia (mais conhecida como Amanajé).

Esse artigo foi publicado inicialmente na revista Capacitando para missões transculturais (No 19, 2o Ed. Digital, 2019), produzida pelo Departamento de Educação Missiológica (Demi) da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB).

Fonte: www.omatureo.com.br

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